-- Nossa, o senhor tá fazendo o caminho sozinho. Não tem medo não? - pergunta a jovem Amanda, atendente do belo complexo turístico do hotel fazenda Boa Esperança, no município mineiro de Delfim Moreira, na Serra da Mantiqueira.
-- Não! Tô acostumado. Nunca me aventuro solitário de fato. Neste caminho, sempre estarei com um Deus, um frei e oito anjos. Meus netos, com iniciais tatuadas aqui na panturrilha direita - respondo sorrindo.
-- Ah, tá! Legal! Entendi. Boa sorte pro senhor. Hoje vai até Pilões?
-- Sim. Muito obrigado.
Diálogo meteórico aconteceu depois de este caipira já ter caminhado 17 dos 34km programados para o quarto dia do difícil Caminho do Frei Galvão. São cerca de 130km em cinco dias, de São Bento do Sapucaí (SP, com jeitim mineru, uai!) a Guaratinguetá (SP).
Sinceramente, fui mais como aventureiro caminhante teimoso do que como peregrino tradicional. Um desafio! Nada de promessa! Mesmo porque, a parada é tão pesada que eu estaria pagando por pecados extras que não cometi. Acho!
Clima muito seco, média de 32°, com excesso de queimadas, fumaça e poeira na estrada e umidade relativa do ar abaixo de 20% judiaram do motor 6.9. E se chovesse também seria mais um parto. Todos os dias iguais: terreno plaino, subidão sem fim, descidão abissal e terreno quase nivelado até a pousada do pernoite... no dia seguinte, a mesma rotina cansativa. Já pensou subir e descer inclinação perto de 30/40° na lama? Haja pecados!
Mesmo assim, apesar da secura, contemplam-se paisagens maravilhosas. Muita natureza, muito verde, muita água jorrando da serra. Por isso o nome Mantiqueira.
130KM EM 179 MIL PASSOS
Foi uma das "travessias" mais difíceis que eu já fiz. Estilo diferente, mas comparável à Serra Fina em 3/4 dias -- 32km e GEA ( ganho de elevação acumulado) perto de 2,5 mil metros por trilhas expostas, pedras⁸⁹ e aclives respeitáveis).
Pra se ter uma idéia, nesta última semana foram cerca de 130km e 179 mil passos em cinco dias. GEA ultrapassou 3 mil metros. Assim como a PEA - perda de elevação acumulada. Traduzindo: pau a pau de subida e descida. Não acredito no cálculo de queima de calorias, mas deu 10.393 no total.
Quer emagrecer, bonitona? Joga a mochila nas costas com +-8kg e vai subir e descer os verdes mares de Minas. Passear na Mantiqueira é um bom começo. Só não pense estar no conforto do shopping ou na esteira da academia. Quer moleza? Vai empurrar minhoca na descida.
Saí de Santo André às 11h de segunda-feira. Ônibus, trem, metrô e busão até São José dos Campos e depois São Bento, onde cheguei às 18h. Fiquei na pousada Tia Cida, do João, a quem agradeço pela atenção e pelo mapinha do trajeto. Muito útil.
Dia 1 -- São Bento x Luminosa
Partiu ao raiar do sol
Pedra do Baú ao fundo
Descendo pro bairro do Quilombo
Marcos e Beatriz subindo para o trabalho na pousada Gorjeios da Serra
Arando a terra logo cedo
Dia 1
São Bento e Quilombo ficando pra trás
Boi e vaca no alto do barranco. Deu ruim! E antes o tucano caprichou na cagada de amora na minha perna...rsrs
Procura-se uma seta azul pra entrar na trilha correta
Ou seria pela estrada?
Trilha e seta azul na mata.Ufa!
Bora pular a porteira
Lago dentro da APA, área de preservação ambiental
Chegando ao pequeno trecho de asfalto
Flores no caminho
Bifurcação
Oliq -- azeite tá muito caro, né pessoal?
Mochila e cajado descansam no monumento da divisa. Agora só descida
Luminosa lá embaixo, invisível
Uia! Fumaça constante
Que beleza!
Quase não dá pra ver, mas ao fundo é o famoso Quebra-Perna, do Caminho da Fé
Por-do-sol no Morro do Cruzeiro, Luminosa
A praça da matriz iluminada
Iniciei a caminhada na terça-feira às 6h15min. Foram 7h15min, com ganho de elevação acumulado perto de 850m. Até a pousada Candeias ( Regina e Zé Rubens, sempre prestativos) em Luminosa (distrito de Brasópolis) foram 24km. Elevação brutal na primeira metade (altitude máxima de 1610m), de bloquetes e terra. De cara, engatei uma RZZ -- reduzida em zigue-zague. Não teve jeito. Depois, só ladeira a baixo por trilhas e estradas de terra. Sinalização com seta azul poderia ser melhor, especialmente na entrada da primeira trilha, à esquerda.
DIA 2 -- LUMINOSA A PIRANGUÇU
No alto do morro, a divisa com Piranguçu
Cachorros e água gelada
Cachoeira quase seca
Agora só descida
E mais banana...
Enfim, uma sombrinha
Fui ver meu gado
Secura: meus cavalos emagreceram por falta de pasto
A placa é clara, mas consegui errar feio na 1a bifurcação. Fui salvo por uma motociclista que ia trabalhar em Brasópolis
Segundo dia começou com o pé esquerdo. Saí de novo às 6h15min. Porém, errei logo na largada ao entrar à esquerda na primeira bifurcação quando era na segunda, no encontro com o Caminho da Fé, onde também falta uma seta azul. Prejuízo de 2km e 30 minutos. Faz parte!
Pra variar, terreno plaino e depois subidão sem fim -- hora de RZZ -- até o cume do dia, na divisa com Piranguçu, altitude de 1400m. Ali, o cordial morador, Alex, me abasteceu de água gelada e não deixou os cachorros me morderem.
-- Agora fica fácil até Piranguçu. Só descida e depois no plaino. O senhor atravessa a cidade e chega na fazenda Maratea. Vai com Deus.
Agradeço e pico a mula entre os bananais. Na região só dá banana. Descida judia da ponta dos pés. Vai ter bolha. E não deu outra: bolha estourada na joanete do dedão direito.
Após 8 horas e 30 minutos, boa parte ao lado do belo rio Sapucaí, chego na pousada Verde Maratea. GEA de mais ou menos 580m e PEA um pouco menor.
DIA 3 -- MORRO DO DEFUNTO
No alto do Morro do Defunto. Cheguei quase morto
DIA 3 -- PIRANGUÇU X WENCESLAU
Piranguçu lá embaixo
A água do sítio é para o gado, mas enchi meu squeeze, engatei uma RZZ e subi o morro.
Sítio/ fazenda bem cuidado
Bica salvadora
Felicidade nas águas do rio Sapucaí, já no bairro São Bernardo, mas ainda Piranguçu
Raddão vermelhão de chapéu novo. Esqueci o velho boné na Maratea...
Como de costume, saio da pousada da sempre atenciosa Silvânia às 6h15min, após excelente café da manhã. Atravesso a cidade e após 2km entro na estrada de terra. Plaino e depois ascensão braba até o mata-burro, na entrada para a rampa de vôo livre, a 1410m de altitude.
A partir daí, um Deus-nos-acuda. Nunca vi uma ribanceira igual. PEA de 450m em pouco mais de 2km. Chocante! Chego na base, bairro de São Bernardo, com o pé direito queimando de dor. Quase morto!
Também, pudera, acabara de descer o famoso Morro do Defunto, na Serra dos Vieiras. Por que Morro do Defunto? É que o bairro ainda pertence ao município Piranguçu, onde fica o cemitério. Como bem antigamente não havia carros, diz a lenda que o falecido era levado morro acima para Piranguçu em carro de boi, carroça, lombo de burro ou mesmo nos braços/ombros de familiares e amigos. Pqp! E eu reclamando de uma dorzinha ardida queimando os dedos do pé.
Da base até o asfalto foram mais uns 13/14km, agora também na companhia do rio Sapucaí. Calma! Meus netos não me deixam. Boralá! Tomo água, molho a cabeça, pego o cajado salvador e chamo meus oito anjos, minhas paixões: Victor, Júlia, Davi, Cecília, Matheus, Beatrice, Gabriel e Gustavo. Vamucuvô!!! Ajuduvô!!!
Sol escaldante, umidade do ar baixa e o caipira fica sem alternativa. Paro no primeiro mercadinho e compro uma cerveja, dois gatorades e um chapéu, já que esqueci o meu tipo legionários na pousada. Coisas da idade!
Demoro, mas chego vivo no asfalto. Para a esquerda, um barzinho sentido Itajubá; para a direita, 7km até a Pousada Castelinho Amarelo ( da Patrícia). Faltavam 15 minutos para as 3h da tarde e a única sombra convidativa era na mesinha do bar. Suor escorrendo. Preciso de líquidos e sais minerais. Que tal uma spaten e um powerade?
Cajado/bambuzinho em mãos desde São Bento, abro o passo às 15h e chego no Castelinho às 17h. Foram extenuantes 34km em 10h45min, com GEA de 550m e perda de +-500m. Janta na lanchonete da Derly foi supimpa. Derlyciosa!!! (desculpe) Ah, tomei coca viu!?
DIA 4 -- TRILHA DA SANTA, UM PRECIPÍCIO
Porteira. Quase no pé da Santa. Vim lá de cima.
Motor 6.9 rateando..rsrs
Placa da Trilha dos Romeiros quase no topo da Trilha da Santa. Bora descer o precipício
Entrada da trilha pra descer. Falta pouco?
Oratórios antes da descidona bruta
Trilha em declive acentuado dentro da mata
Cansaço toma conta. Mais água
Casa abandonada após a pinguela de concreto
Atravessando a pinguela
Ipês e cachoeira Formosa, na bela fazenda Boa Esperança
Entre eucaliptos. Que delícia!
4km até a Boa Esperança
Quarto dia do CFG foi o mais difícil. Acúmulo de ganho de elevação (1000m), de perda (900m), de cansaço (físico e psicológico), de secura e de dor nos pés e no quadril matam qualquer cristão. Definitivamente, nesta quadra da vida, não tenho mais credencial de herói.
Demorei 11 horas pra cumprir mais 34km até a pousada da Sueli, no bairro de Pilões (Guaratinguetá). Foram mais de 9km de asfalto, antes de entrar à direita na antiga Ponte de Zinco e mais 1,5km para chegar na trilha que corta caminho pelo pasto. Sinalização pouco visível junto ao passador pode fazer o peregrino ( ou virei pereveja?) passar direto.
Neste percurso inicial, Frei Galvão coincide com Caminho de Aparecida ( 300km de Alfenas/MG a Aparecida/SP), com entrada à direita para o Charco/Pedrinhas.
Asfalto na divisa
Placa/trilha escondida no passador
Atenção...à direita, no pasto
Subidinha curta mas puxada (cheia de bosta de vaca) e descidinha suave, volto pra estrada e dou de cara com a placa -- fazenda Boa Esperança - 4km.
Sempre à sombra salvadora da enorme plantação de eucaliptos, passo pela pousada Saborzinho da Roça -- 22 moticiclistas parados abriram caminho pro idoso preferencial -- e pouco depois aporto no restaurante da Boa Esperança.
Outra das sete cachoeiras da fazenda
Com vista para a cachoeira emoldurada pelos ipês amarelos, tiro as botas, acaricio o pé com três bolhas e descanso por 15 minutos. Powerade custou R$ 9 e spaten 269ml saiu por R$ 7. Cá entre nós, um absurdo, já que nos barzinhos e no mercadinho paguei R$ 5,50 no gatorade e R$ 5/6 na spaten 350ml. Talvez o belo visual esteja incluído no preço abusivo.
Saio às 11h15min e pego a trilha pela mata em ascenso. Ganho terreno às margens do riacho, faço fotos da cachoeira Belíssima e chego numa seta azul mostrando para atravessar o rio à direita. Pqp! Mas o mapa indica linha reta e posterior pinguela de concreto. Melhor checar! Meto a bota na água e atravesso. Adivinha! Dei com os burros n'água.
Voltei encharcado até as panturrilhas -- convite a mais bolhas -- peguei a trilha certa e após 200m dei de cara com a concretagem do mapa. Atravessei e logo saí numa estrada.
Credencial do CFG indicava hotel Barão pra esquerda; croqui do solitário coordenador do caminho, Brinquinho, mandava ir pra direita. Mapinha do João também. Só esqueceram de avisar com clareza que o proprietário do hotel em reformas proibiu a passagem dos peregrinos alegando excesso de lixo. Percurso aumenta 2km.
Voto de minerva ficou mesmo com uma placa da pousada da Sueli indicando à direita. Daí pra diante a placa branca e vermelha foi meu norte. Saí numa estrada mais larga, depois na trilha, novamente estrada --- ali também falta uma placa indicativa -- , subi à direita, passei por três riachos e finalmente cheguei, às 15h30min -- limite pra iniciar descida é 16h -- na temida Trilha da Santa. Não fui até o mirante, uns 200m à frente. Seria o Pico do Carrasco?
Muro de concreto no meio da mata. Trincheira durante a Revolução Constitucionalista de 1932?
DIA 4 -- Descanso justo, cerveja e powerade a preço abusivo
Águas límpidas
Trilha leve
Cachoeira Belíssima
Véinho cansado
Na mata fechada
Santo Deus! São cerca de 4km descendo pela mata. Coincide com a Trilha dos Romeiros ( 33 km de Delfim Moreira a Aparecida via Guaratinguetá) Do cume à base são quase 800m de PEA. São perto de 2km de trilha cheia de pedras soltas. Um perigo! Um zigue-zague interminável. RZZ em declive! Só melhora da metade pra baixo. Chego na pousada após 11horas de pernada, às 17h15min. Subi cerca de 1000m e desci uns 900m neste quarto dia. Finalmente, Pilões!
Mais tarde, tive o prazer de conhecer a Sueli, seus filhos Rafael e Gabriel e a simpática Fernanda, uma cozinheira/faz-tudo de mão cheia. Pessoas extremamente simples e agradáveis, às quais sou grato.
DIA 5 -- UM ERRO DE JUVENIL
Pousada da Sueli. Gratidão
No último dia da pernada cometi um erro de juvenil, imperdoável para um veterano. Macaco velho vacilou e pulou em galho seco. Considerando que cada informação mostrava uma quilometragem, de 21km a 26km até a Casa do Frei Galvão, no centro de Guaratinguetá, em terreno plaino, calculei que poderia sair mais tarde e chegar à rodoviária em seis horas pra pegar o ônibus sem atropelos.
Ledo engano! Me ferrei! Tomei café com a família, estiquei a conversa e só peguei estrada a baixo às 7h30min, quando deveria sair no máximo às 6h. Afinal, subida acumulada ridicula de apenas 100m e PEA de 420m. Grande mancada do trator 6.9 foi não levar em conta o acúmulo de desgaste físico e mental, as bolhas, o nariz sangrando, as dores no quadril e, principalmente, o clima deveras seco, a baixa umidade do ar e a poeira que impregnava a estrada, além das narinas.
Foram 12/13km de terra sem sombra e uns 3km de asfalto pegando fogo até chegar ao clube/bar do Nesio, no bairro de Santa Edwiges. Extenuado, refiz os cálculos pra percorrer os 10/11km restantes e concluí que chegaria quebrado e em cima da hora pra pegar o busão até São Paulo. Isso se não caísse no meio do caminho. Tomei uma água, duas garrafinhas de Skol e deixei o orgulho de lado. Aceitei a carona do Fernando, dono do clube/bar, que ia até perto do centro. Foi a melhor decisão.
Na rodoviária, deu tempo me lavar como gato no banheiro, trocar a camiseta, colocar desodorante, trocar as botas pelo chinelinho meia-boca e comer um hamburger chinfrim antes de voar com a Pássaro Marron.
Viagem tranquila. Às 20h já estava em casa. Mais um difícil desafio superado. Que tal uma pizza caseira de calabresa com muçarela e parmesão ralado? Por que não um Luigi Bosca malbec pra festejar? Tim-tim!
Obrigado meu Deus, meus anjos e a todos que me ajudaram em mais uma louca aventura solo de um caipira metido a besta.