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segunda-feira, 3 de outubro de 2022

ÉDER JOFRE, O ÚLTIMO NOCAUTE

 

Ao lado de Mohamad Ali, no cinturão do hall da fama

Mais um ídolo se foi.  Éder Jofre, a lenda. O Galo de Ouro, um dos 10 maiores pugilistas  mundiais de todos os tempos, e dono de jabs perfeitos e diretos, uppers e cruzados demolidores,   foi nocauteado pela pneumonia, por complicações renais e pela demência pugilística,   a maldita encefalopatia traumática crônica. 


Não contive as lágrimas. Éder foi o Pelé do boxe. Aos 86 anos, foi-se mais um ícone do esporte,  contemporâneo  também dos dribles  desconcertantes de Garrincha, dos saltos voadores    do triplista Ademar Ferreira da Silva e dos backhands inesquecíveis da  tenista Maria Ester Bueno.


Um direto de esquerda demolidor

-- Bom dia, dona Marta. Tudo bem? A senhora sabe que não gosto muito de estudar, de ler essas coisas difíceis -- Machado de Assis, José  de Alencar, Jorge Amado, Euclides da Cunha e cia. Meu negócio é jogar bola descalço e bater figurinha  com a molecada da avenida. Inclusive com o Badyzinho,  seu filho. Boa gente, mas  um perna-de-pau de mão cheia  (Rsrs).  Então...mas eu queria ler o livro Galo de Ouro,    sobre a vida do Éder Jofre. Tem aqui na biblioteca da escola?


-- Menino, menino...aqui  no Euclides ( Gymnasio Estadual) tem de tudo. Até nosso campeão. Espera aí. Está ali no alto. Como sou baixinha, preciso da escada...Pronto,  divirta-se. Sem fazer orelha no livro, hein! Sente-se ali perto da janela. Tem mais claridade e o  apoio de madeira para o livro ficar inclinado na mesa ainda não  quebrou. Ainda...porque vocês adolescentes são levados demais, viu? Ah,  sem conversar alto! Sou meio surda, mas os outros ouvem até demais.

Salvo qualquer engano da minha parte, estávamos em 1969. Eu tinha 14 anos e cursava a 4a série ginasial na saudosa São José do Rio Pardo. Foi minha primeira leitura por iniciativa própria. E olha no que deu; virei jornalista e adoro ler de tudo. 


Devorei o livro romantizado sobre uma máquina de  aplicar um arsenal de  golpes.  Os jabs rápidos pareciam diretos. Os ganchos  de esquerda eram fatais.  Direita, esquerda, direita...e o machado batia pra valer. Um pequeno gigante, forte como um touro. Um lenhador de 60kg exímio também na arte de bailar. O ringue virava palco... bater, sair,  se esquivar, voltar, encaixar as mãos pesadas no baço,  no fígado ou na ponta do queixo e nocautear. 


A  essência da nobre arte. Um boxe que,  de tão técnico e bonito, parecia fazer passar despercebida uma violência escamoteada, mas duramente perpetrada a cada golpe, a cada gota de sangue. Especialmente na cabeça. Por isso fez tantas vítimas.


Nem levei o livro de Henrique Mateucci  editado em 1962 pra casa. Pra quê? Ia atrapalhar meu futebol, meus peões, minhas pipas,  bolinhas de vidro e até meu estilingue. Não ia dar certo. Até porque, minha mãe, dona Jandyra, costureira de mão cheia, não ia acreditar. A agulha ia espetar seus dedos calejados, vez por outra sem a proteção  providencial do dedal.


Assim,  se intensificou minha idolatria pelo gênio Eder Jofre, filho de uma família de pugilistas mas que queria mesmo era ser desenhista ou jogador de futebol. Eu,  já um corintiano  meio enrustido -- ou seria um santista fanático  apenas por Pelé? -- endeusando um são-paulino de quatro costados. Não sei!  Dúvidas de adolescente. Portanto,  perdoáveis.


Pois é...hoje o caipira-raiz quase setentão está aqui, com  lágrimas nos olhos, tentando entender por que nossos  ídolos não são eternos. Ademar,  Maria  Esther, Garrincha, Ayrton Senna,  Éder  e um dia Pelé,   Rivellino,  Wlamir Marques, Oscar...


Vítima  de golpes  sequenciais no crânio -- mais uma,  como o insuperável Mohamad Ali e o nosso folclórico campeão Maguila -- Eder Jofre estava internado com pneumonia, mas já carregava a demência progressiva há alguns anos.


MEDELL, SANCHES, HARADA,  LEGRÁ  E ATÉ NELSON GONÇALVES

Não é à toa que o nosso " imortal" Galinho de Ouro tricampeão mundial está no Hall da Fama  do Boxe e é considerado um dos 10 maiores da história. O cartel de Eder Jofre é fantástico. Em 12 anos de carreira, com um hiato de três anos após nova derrota no Japão, em 81 lutas,   o  nosso punho de aço teve 50 vitórias por nocaute.  Os mexicanos Joe Medell e Eloy Sanches sentiram sua força e terminaram na lona, assim como o irlandês John  Cadwell, em 1962,  na unificação dos títulos europeu e mundial  pelo Conselho Mundial de Boxe. 


 Foram  25  vitórias por pontos,  quatro empates e apenas duas derrotas. Acreditem, só duas,  ambas do outro lado do mundo, quando colocou o cinturão em jogo  diante do japonês Masahico Fighting Harada. Lembro-me da primeira, em Nagoia,   dia 18 de maio de 1965.


Em 15 rounds,  o nosso Eder bateu muito e apanhou pouco, mas, em decisão dividida  os jurados  deram vitória ao nipônico. Eder morreu  contestando o resultado. 

Naquela manhã, o Brasil parou para ouvir a voz emocionante do rádio. Parou, reclamou e chorou. Eu também. A 20 dias de completar 10 anos, este, então menino, de calças curtas, ouviu tudo pelo radinho de pilha  -- se não me engano   rádio Bandeirantes     na voz de Flavio Araújo -- sentado num banquinho de palha, ao lado seu Valdemar Sernaglia, o vizinho sapateiro, palmeirense doente, juiz de futebol e ocasionalmente técnico do meu Benjamin FC nos finais de semana -- quando não saía corrido dos campos de várzea e chegava de carona com o "Corintinha", fusca preto e branco da Polícia  (rsrs).


Outra lembrança do vizinho sapateiro: foi ele quem fez, à mão,  minha primeira chuteira. Couro puro. Inclusive os seis cravos; quatro na frente e dois no calcanhar. Foi quando este velho zagueiro aprendeu a bater, a chegar junto nos atacantes.


 Chuteirinha estreou num treino dominical com Roque Gervásio, na Associação Atlética Riopardense. Saí da reserva e entrei no meio-campo.  E não é que fiz um gol de fora da área? Um frangasso do  Nino  no gol das piscinas. Deficiente físico, ele deu dois pulinhos antes de saltar  atrasado. Dá pra esquecer?

 

Voltemos à narração. A cada direto de Eder, o locutor ia à loucura e previa mais um nocaute.  Mas Harada abusava dos clinches, se agarrava para parar a luta. Nós  vibrávamos,  gritávamos. Por parte dele, sairam muitos palavrões quando se anunciou a vitória de Harada.  Foi quando atravessei a rua e entrei em casa chorando. Uma manhã triste pra mim e para o povo brasileiro. Só não foi pior porque os marimbondos não desceram quando bati a enorme e velha porta da rua.

 

A revanche veio um ano depois, em Toquio,  e Harada voltou a vencer por pontos,  agora em decisão unânime  jamais confrontada. Acostumado a vencer, Éder resolveu descansar por três anos, quando fez até lutas-exibições em circos.  Numa dessas apresentações, em 1967,  no Ibirapuera,   enfrentou o inesquecível cantor Nelson Gonçalves -- ..."naquela mesa tá faltando ele, e a saudade dele tá doendo em mim"  -- seu amigo, que chegou a ser  boxeador,  mas desistiu por causa das drogas.


Em vez de  soltar aquele vozeirão, Nersão cansou de apanhar. Porém, a luta terminou sem vencedor declarado, com o cantor, abraçado ao amigo,  declamando parte da música Castigo,   do compositor Lupicinio Rodrigues: " Homem que é homem faz qual o cedro, que perfuma o machado que o derrubou". 


Ainda em forma, o bailarino voltou aos ringues em 69,   para depois disputar o título,  agora dos penas, em 1973. Em Brasília, um combate eletrizante e equilibrado com o campeão  José Legrá,  cubano naturalizado espanhol. 

Assisti pela tv Tupi à  nova conquista  do Galinho. Narração de Walter Abraão. Tudo em preto e branco. De novo campeão ( ganhou por pontos) Eder Jofre, dono de um humor fino, cortante,   piadista nato, só encerrou carreira em 76.


"O negrão era bom mesmo. O maior peso pena que enfrentei.  Me bateu. Acertou minha cabeça. Segurei nas cordas pra não cair. Não caí. Foi o chão que subiu" -- brinca Éder rindo  muito da situação.


Só não riu tanto como político. Famoso,  após encerrar a carreira,   foi eleito vereador por quatro mandatos em São Paulo. Sem tanto sucesso. Meio esquerdista   ali  ele não cantou de galo, não! Mesmo porque, no galinheiro da Câmara jamais faltarão raposas.


Perder por nocaute? Nem pensar. Mas faltou pouco contra Joe Medell. " Talvez minha luta mais difícil. Foi antes de ganhar o cinturão contra o Eloy Sanches.  Eu estava perdendo, com o nariz sangrando muito, e falei pro meu pai, meu treinador  que  não aguentaria voltar pro último round. Ele me disse que o Mendell estava morto. Aí voltei e o nocauteei com uma bela sequência de diretos de esquerda e direita. Graças ao meu pai". (rsrs)


Nunca um juiz abriu contagem para Eder Jofre. Nunca  o grande Eder beijou a lona. No ringue de boxe,  nunca perdeu por nocaute.  Mas neste domingo de eleições Eder Jofre   sofreu seu primeiro e único nocaute.  Sem a chance de  ao menos um uppercut de esquerda certeiro como contragolpe no queixo do destino. Uma esquiva impossível. Um bailado sem música. Um adeus sem volta. Um último nocaute.

Protagonista de uma linda história, o desenhista piadista  virou livro. Virou filme -- 10 Segundos para Vencer! Virou lenda! Valeu, eterno campeão!  Obrigado.