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sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

TRILHA DO OURO, DO SUOR E DA SUPERAÇÃO


Antes, índios,  escravos, bandeirantes,  colonos, tropeiros e contrabandistas. No passado, muito minério, particularmente o ouro das Minas Gerais. Depois, o café do Vale do Paraíba, mais na região da histórica Bananal, então dominada por barões milionários. Tudo sobre o lombo de mais de três mil mulas por dia.

Agora, nas mesmas pedras pé-de-moleque assentadas por escravos nos séculos  XVII e XVIII, a procissão é de turistas,  trekkers,  trilheiros e outros  aventureiros do mundo todo.

Na realidade, a Trilha do Ouro ( Caminho de Mambucaba, pra diferenciar da vertente com origem em Campos Novos, Cunha) sempre foi uma rota alternativa ao Caminho do Ouro, hoje conhecida como Estrada Real, de Ouro Preto a Paraty. 

No tempo do Império, para fugir dos barreiras alfandegárias e dos altos impostos da Coroa Portuguesa, o jeito foi aproveitar as  antigas trilhas indígenas. Para tornar  a tarefa de mulas, tropeiros e escravos menos penosa, construiu-se o belo e  histórico calçamento.  Tanto hoje quanto ontem, liso como sabão.

Se  chover, a trilha de mais de 50km passa de moderada a difícil num piscar de olhos. Além do piso "quiabal", a lama atolante também complica   a vida dos papa-léguas de plantão.

Graças  a Deus, há 10 dias, não foi o que aconteceu. Nada de chuva. Sim,  eu e o  amigo Flávio lo Giudice escorregamos. Sim, metemos a bunda no chão e  na pedra. Mas fomos poupados e agraciados pela mãe natureza. Afinal,  ela nos mostrou sua exuberante beleza e fez o sol iluminar a Mata Atlântica de cabo a rabo...da portaria do Parque Nacional da Serra da Bocaina/São José do Barreiro  (SP) até  a ponte de Arame, no sertão de Mambucaba/Angra dos Reis (RJ).

Aparentemente,  e considerando-se que me submeti a cirurgia cardíaca há quatro meses,  passamos no teste preparatório para a expedição ao  cume do Monte Roraima, oitava montanha mais alta do Brasil. De 22 a 28 de fevereiro de 2024, serão sete dias de imersão pura, na companhia de guias e índios venezuelanos. 

Isso se não der ruim em Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, que insiste em anexar   Essequibo, região  rica em  petróleo e minérios, 70%  do território da Guiana.  Karacas!!! Mais uma aberração do ditador Nicolas  Maduro!  Pensa que babacas e boçais autoritários só comandam o Brasil? Até amiguinhos no topo do  poder o desequilibrado tem por aqui. Um absurdo! Se merecem!

Conduzidos pelo bom profissional e sempre atento guia Roberto Marcolino, foram 68.569 passos em dois dias de muito suor. Queimei 4.327 calorias. Literalmente, "moiei" o pano. E torci na beira do Mambucaba.  No total, desnível negativo (declive) superou a casa dos 2600m. Desnível positivo chegou a 1450m, calculo.  É bom ressaltar que, no caso,  altimetria,  tipo e estado do terreno são mais importantes do que a quilometragem rodada.

Subimos de carro  os 26km de Barreiro à portaria. A partir daí, pernas pra que te quero, das 8h até 15h. Portanto, sete horas pra cumprir cerca de 24/25km até a casa/pousada da dona Palmirinha. Mais subida do que descida. No Alto da Jararaca, altitude supera 1500m. Em Angra, apenas 50m, quase ao nível do mar.

E  no primeiro dia passamos por três lindas cachoeiras fora da trilha. Desvios também têm sobe e desce para se chegar à  belíssima Santo Isidro, à  Cachoeira das Posses e à do Bonito, onde escorreguei e judiei ainda mais do ombro esquerdo, sério  candidato à malfadada capsulite adesiva. Ossos da idade!!!



Cachoeira Santo Isidro

Cachoeira do Veado



Cachoeira das Posses
Flávio na ponte pênsil

Terra arrasada

Cachoeira do Bonito
Cachoeira das Posses



Raddão e Roberto, o guia

Um caipira na ponte pênsil

A brava Cachoeira da Camisa

Olha a tragédia

Raddi, Flavio, dona Palmira e Roberto








SJBarreiro ao fundo

Natureza exuberante

Na entrada do parque


Dona Palmira pilota com maestria  antigo fogão a lenha


Dona Palmira tem um sorriso matreiro,  cativante, que me encantou desde 2018, quando fiz o percurso em três dias, com um grupo da MW Trekking comandado pelo excepcional guia/ mestre botânico Herbert Serafim, que virou meu amigo. O filho da dona Palmira, Naldo, é mais discreto,  introspectivo. Nem por isso deixou de nos brindar com aquela pinguinha amarela.  Huumm! 

Lá não tem energia. Só lampião e a nossa lanterninha de cabeça. Sem geladeira, cerveja não desce nem a pau. Nem precisou.  Cama simples mas limpa e  confortável, chuveiro quente por conta da serpentina via fogão a lenha e comida caipira, com direito  a carne suína conservada na lata, à moda antiga. Salivei! Lembrei da vó Lica e da tia Guinha,  da saudosa fazenda Boa Esperança.

Até mesmo pão caseiro, bolo,  banana e ovo cozido a família bocainense nos ofereceu pra concluir a pernada no dia seguinte. Não sem antes  mais uma pérola da dona Palmira:"Ceis  ficam aí de  conversa. Óia lá o véião indo embora. Já tá subindo a trilha". Pois é...o veterano (68 anos) aqui abriu a passada, mas em seguida  foi alcançado pelo cinquentão ( Flávio tem 54) e pelo "juvenil" (guia tem 43 anos). Adorei o véião...rsrs


 VEADO,  PÉ-DE-MOLEQUE,  TORNADO E CAMISA


 Saímos às 6h.  De cara começamos a descer pelo calçamento secular, obra dos escravos pra facilitar o   duro percurso do planalto para o litoral e vice-versa. A partir daí, uso do stick ( ou cajado) é imprescindível.

Cerca de 10km nos levaram à estonteante Cachoeira do Veado, atingida ao superarmos a pinguela  sobre o rio sustentada por cabo de aço. São duas quedas de cerca de 100m. Dizem que há, ainda, uma terceira queda,  lá em cima, mas não dá pra ver.


Calçamento histórico com pedras pé-de-moleque


Ficamos pequenos diante da raiz exposta

Flávio na pinguela com cabo de aço; acesso à Cachoeira do Veado

Nós no Alto da Jararaca


Uma cobrinha! A grande escapou da foto..rsrs
Flávio na Cachoeiras das Posses





Após escorregar, ombro lesionado precisou de água gelada 






Matriz de SJBarreiro

Mais pé-de-moleque. Um quiabo



Fotos feitas,  estômago forrado, voltamos cerca de  720m e atravessamos a ponte pênsil ali perto da pousada do Zé do Zico. A partir daí, uma rotina tão bela quanto estafante. Uma descidona e uma subidinha...outra descidona e  mais uma subidinha, sempre na companhia do rio Mambucaba, à nossa direita, e antenados pra pisar certo, entre as pedras, pra não cair.

Vez por outra, ou estrategicamente (rsrs),  uma parada pra amarrar a bota,  tomar água e respirar. Ali não falta água. Não precisa levar mais de um litro, não. Porém, sobram alegria,  disposição, bolhas,  suor e dor. Mas tudo isso não assusta. Faz parte do nosso uniforme. Né, Flavião?

Então, boralá! Num ritmo bem adequado imposto pelo Roberto, não demorou pra chegarmos ao local da Mata Atlântica castigado pelo tornado do dia 18 (?) de outubro.  Temporal derrubou muitas árvores e provocou a interdição da trilha por mais de 10 dias. Tanto que nossa travessia, inicialmente marcada para os dias 25 e 26, foi adiada.

Por cerca de 800m o ambiente era de terra arrasada.  Assustador! Triste! Incrível como a natureza não pode mesmo ser controlada. Quando passamos, agora com sol  quente e céu azul,  eram  troncos de árvores enormes caídos pra todo lado.

Superado o susto, voltamos ao convívio do verde, da sombra e das pedras escorregadias. E, no quinto final da travessia, mais uma beleza: a Cachoeira da Camisa. Trilha curta, mas íngreme, nos levou a uma queda d'água ampla e forte. Afinal, o Mambucaba já não era aquele riacho lá de cima. Valeu a pena superar o cansaço pra ver aquela maravilha. De novo a mãe natureza!

De volta à trilha e à rotina do relevo, não demoramos pra superar os bananais  -- sim, comemos banana do cacho no chão -- e transpor a ponte pênsil do rio Santo Antonio, afluente do agora grande Mambucaba, que, em tupi-guarani, especialmente para índios tamoios e tupinambás, significa abertura/passagem, rumo ao planalto paulista. Mas há controvérsias. Alguns dizem que mambuca era uma abelha-cachorro abundante no local e outros defendem origem numa planta.

Depois de  10 horas e muito sacrifício -- eu sentia dor nos quadris, mas nem me lembrava que passara por cirurgia,  chegamos à  famosa ponte de Arame às 16h.

Banho de "canequinha" no Mambuca (  após mais de 26km, intimidade é uma merda!), roupa encharcada trocada por bermuda e camiseta limpas e secas,  e botas  imundas dando lugar  àquelas havaianas deliciosas, subimos na Spin do seu Aluisio e partimos pra Barreiro.


Na estrada de terra que leva à Rio Santos ainda matamos a saudade da icônica Pedra do Frade, onde subimos há   quatro anos.  Um bate-e-volta em 13 horas. Saindo da rodovia, partimos morro acima. Parada estratégica em Lidice pra degustar  um espeto de frango com uma Heineken dos deuses. PQP!  Delicia!  Perfeita!

Entre Rio Claro e Bananal pegamos um temporal. Muita água e vento localizados derrubaram bambus na pista, mas e o Aluisio mostrou cuidado e categoria ao volante.

Chegamos no Barreiro às 20h30min13seg. Com tempo suficiente pra tomar banho e mais duas Heineken com pizza.

Assim  terminava nossa aventura. Sem dúvida, treino duro dentro do projeto Monte Roraima/2024. Para mim, particularmente, um exercício de superação.

Obrigado, Flávio! Obrigado, Roberto! Obrigado, dona Palmira! Obrigado, Senhor!


  P.S: só pra lembrar, o PNSB foi constituído em 1971, tem 104 mil hectares de área e contempla diretamente  quatro municípios paulistas ( São José do Barreiro, Areias, Cunha e Ubatuba) e dois cariocas ( Angra dos Reis e Paraty).  A pacata e aconchegante São José do Barreiro é considerada " paraíso do trekking no Brasil".