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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

O fascínio da Trilha do Ouro


Sob o testemunho  de  montanhas, florestas, cachoeiras, céu e mar,  no último feriado prolongado de 7 de setembro  fizemos a histórica Trilha do Ouro. Foram mais de 50 quilômetros entre São José do Barreiro/Serra da Bocaina/SP e o distrito de Mambucaba/Angra dos Reis/RJ.

Bom lembrar  que critérios de avaliação sobre  beleza e dificuldade obedecem  a certa subjetividade.  Mesmo sem tantos visuais longos, amplos,  de serras e horizontes  a perder de vista, fica-se encantado com a exuberância da Mata Atlântica. Sons, cores,  perfumes, águas, história e visuais de tirar o fôlego.  Beleza específica,  bem diferente da desfilada na travessia da Serra Fina, onde o por e o nascer do sol são indescritíveis.

Quanto ao nível de dificuldade,  a princípio, moderado. Obstáculos apenas para obesos,  oncotôs ( pseudo turistas/trilheiros fora do contexto) e sedentários e/ou preguiçosos. Mas se chover muda muito e fica bem difícil em função da predominância de  pedras escorregadias   na descendente.

Trilha, propriamente dita, começou por volta das 9h30min de sexta-feira, na Pousada Recanto da Floresta, no alto da Bocaina. Zé Milton e Andrea dirigem com maestria a pousada e a MWT,  de
onde partimos para 26 km em dois veículos a partir do centro de São José do Barreiro.

Da pousada, cortando caminho pelo pasto para evitar a volta da estrada, em cerca de meia hora já estávamos na portaria do Parque Nacional da Serra da Bocaina. Passamos bem próximos das águas ainda mansas   do Paredão e da Toca da Onça.

Vencidos os trâmites burocráticos, "partiu" Trilha do Ouro. No primeiro dia foram cerca de 25 km  até da pousada Palmirinha. Após leve caminhada de estrada, não tivemos maiores dificuldades pra chegar à esplendorosa cachoeira de Santo Isidro, com altura superior a 80m.

Entrada da trilha à esquerda está bem demarcada e degraus descendentes nos levam à grande piscina gelada. Por ali começamos a encontrar  vários trilheiros, quase todos com o mesmo destino.

Todos ficaram maravilhados com a exuberância da  grande queda d'agua. Poucos -- Ana, Érica, Alessandra e Pedro -- ousaram molhar além das canelas. Após descanso e lanche de aproximadamente 30 minutos enfrentamos degraus agora ascendentes, lógico, e voltamos à estrada de terra, convergindo à esquerda.

Pé na estrada novamente até encontrarmos uma placa à esquerda onde se lia ATALHO. Sem tombos e sem danos, cortamos caminho pela trilha sombreada em descendente até voltar à estrada  mais ensolarada que também leva à pousada Vale dos Veados. Mas  quem quer passear  até lá só encara sem medo se tiver com  veículo 4x4.

E lá vamos nós! Herbert ( pai da Ísis e nosso grande líder), Ana, Érica, Angela, Iris, Alessandra Tambellini, o casal Gaelle/Fernando, Raddi e o jovem Pedro, que fechava o grupo e coordenava as "fotos-de- bromélia", algumas  úmidas e rápidas; outras mais demoradas e cheirosas.

Num ritmo ótimo e respeitoso, e sempre com aulas de um biólogo com mestrado em botânica, o Herbert, progredimos sem percalços. Alguns  curtos ganhos de elevação nada mais provocaram do que a subida momentânea da pulsação.

                                                             CACHOEIRA DAS POSSES

Não tardou para chegarmos ao segundo ponto de descanso, banho e lanche/almoço. Placa visível, adentramos  à esquerda e pegamos uma descida curta mas com angulação significativa. Entre eucaliptos e araucárias sobreviventes,  ainda há restos de casas de uma antiga fazenda. Por isso muitos mochileiros acampam por ali na primeira noite.

A bela cachoeira das Posses, com mais de 40m de altura,  nos esperava de braços abertos. As pedras pareciam  servir de arquibancadas. Desta vez não resisti e entrei na água ao lado da Érica, da Alessandra e da Ana.

Pão, castanhas, amêndoas, salamitos, parmesão, damasco, chocolate, carb-up, barrinhas de cereais, gatorade, água e outros quetais. Estômagos forrados, mochilas nas costas e muita disposição. Bora subir a trilha pra voltar à estradinha e chegar ao destino.

Em homenagem ao meu saudoso pai, peguei o seu antigo pio e chamei um inhambu. Fiquei feliz quando ele respondeu. Uma vez foi suficiente. Depois ele percebeu que a propaganda era enganosa. Ninguém sabia, mas eu sentia;  meu caçador favorito nos protegia.

Daí até a casa de fazenda de pau-a-pique seriam pelo menos mais quatro horas. Quase sempre apreciando a beleza do entorno, dos riachos cristalinos, dos vales verdes e dos contrafortes das montanhas da  inesquecível Bocaina e da Serra do Mar.

 Agora com mais subidas intercaladas com descidas. Mas o clima ajudava. Não judiava. Mesmo com o dia claro e o céu com poucas nuvens. Plantas e pássaros,   pontes e pinguelas, trilhas e estradas...Não há espaço para tristeza. Nem cara feia. Companheirismo sim, egoismo não!

Na bifurcação que indicava pousada Barreirinha à esquerda e Vale dos Veados à direita,  pegamos  a primeira opção. Não sem antes o Herbert começar mas não terminar a  hilária história de um editor/oncotô apelidado de Sete-Léguas.

Só posso garantir que o Sete-Léguas deu um trabalhão danado por não estar preparado para a empreitada. Sei que o imprudente  trilheiro foi amparado por todos e chegou ao final da trilha. Estropiado, sem "flechas, sem  uma saca de café e sem  um grama de ouro sequer".

Voltando à  trilha. A  essa  altura, faltando  cerca de duas horas para o destino do dia, alguns companheiros nossos já estavam um pouco mais aliviados, já que o Naldo, filho da dona Palmira, veio ao nosso encontro com uma mula salvadora. Menos peso, mais disposição.

E lá vamos nós novamente! As  tagarelices diminuem, mas as informações relevantes do professor continuam. Agora as sombras já são mais frias e escuras. Antes das 18h somos orientados a lançar mão das  salvadoras lanterninhas de cabeça.

Foi quando minha esposa soltou uma pérola:"Chiii! Minha lanterna não ilumina nada. Olha só! O que será que aconteceu?" Parei, pensei e não resisti:"Chu, quem sabe se você ligar? Talvez acenda né?"  rsrsrs

Brincadeira à parte, já estava mesmo escurecendo. E nada de chegar nem mesmo na Barreirinha, pousada onde ficaram muitos outros trilheiros. Mas não nós, que optamos pela hospedagem da dona Palmira,  de quem só ouvíramos elogios.

Casa de pau-a-pique, sem energia elétrica, mas  extrema simpatia dos anfitriões. Banho quente sustentado pela serpentina do fogão à lenha e um  sonhado jantar  com  arroz, feijão,  macarrão, lasanha,  batata frita, carne de porco,  frango de panela, linguiça... Viajei na imaginação.

Meu Deus! Eu não comentei nada com ninguém, mas já estava salivando só de imaginar. Banho, comida e cama... Se tiver uma pinguinha... Estava cansado, mas não extenuado. Até que, após uma pernada de 25km,  chegamos à  aconchegante pousada,  por volta das 18h43min.

Dona Palmira, Naldo e Luciane são muito simples, prestativos e simpáticos. Tudo confirmado. Jantar à luz de velas estava ótimo. Cozinha  esfumaçada, com  linguiça e peças de porco dependuradas naquela vara alta sobre o fogão,  me fez lembrar da casa da vó Lica, na  saudosa fazenda Boa Esperança, onde praticamente fui criado.

Quanto ao sono, fomos privilegiados por dormir numa cama de casal. Simplesmente desmaiei. Só fui acordar lá pelas 7h. Ouvi o galo cantar mas fiquei quieto,  no quentinho. Café da manhã também estava delicioso, com bolo, pão de casa, mel, manteiga, queijo e extrema  cordialidade da dona Palmira.

                                               PONTES, PINGUELAS,  SOMBRA E ÁGUA FRESCA

Fotos, abraços, agradecimentos e despedidas. Partiu Trilha do Ouro, segundo dia. Apenas 10km. Mais descidas. Poucas subidas. Nada desgastante. Mas muito cuidado! O ditado  diz que "na descida todo santo ajuda", mas não é bem assim. É preciso  respeitar e manter o foco. Se vacilar toma chão.

Acho que saímos depois das 9h. Descansados e motivados para a nova e curta jornada até a casa do Zé do Zico.  Foram  poucas subidas e muitas descidas mata adentro,  já com o caminho trilhado por tropeiros sobre as pedras remanescentes do sacrifício de escravos.

Pra quem não se lembra, os primeiros a demarcar a trilha foram os índios Guaianazes. Depois o caminho teria sido alternativa para se descer com o ouro das Minas Gerais até Paraty, burlando o pagamento de impostos.

Em seguida, por meio de carroções de bois, serviu para o escoamento do café do Vale do Paraíba até o porto.
Hoje, apenas raros moradores do PNSB, guias e turistas trilheiros amantes da natureza. Como nós.

Percurso, entre matas, pontes e pinguelas, sempre margeando o rio Mambucaba, foi bem tranquilo para todos. Chegamos no  Zé do Zico por volta do meio-dia, se não me engano.  A famosa gaiola de tantas fotos parece estar aposentada. Para atravessar o rio e chegar andamos mais um pouquinho e  utilizamos uma ponte pênsil.

E  de cara já deu pra perceber que não seria tão tranquilo. Se na noite anterior os trilheiros se dividiram entre Barreirinha e Palmirinha, desta vez todos ficariam no mesmo espaço, dentro de casa ou em barracas próprias ou alugadas.

Pernoites definidos. As seis meninas ficariam num quartinho com três beliches. Nós, homens, ficamos em outro quarto. Também apertado, mas não menos limpo e aconchegante. Marcamos terreno, deixamos as mochilas e saímos para conhecer a famosa Cachoeira do Veado.

Nada mais  que  25 minutos,  de novo a ponte pênsil e outra pinguela. E lá estávamos nós diante de três esplendorosas quedas d'água que superam 100m de altura. A primeira não dá nem pra ver de perto.

Por pura  precaução, não entramos na correnteza. Mas fizemos fotos -- como a que abre o texto -- e curtimos muito por mais de uma hora. O suficiente pra  forrar o estômago, colocar a conversa em dia e aprender ainda mais  sobre botânica com o Herbert.

Na volta pra pousada a dúvida  principal era sobre o banho: frio no rio, sem fila, ou quente, no banheiro das meninas, com direito a "senha". A maioria do nosso grupo optou pelo rio e se deu  bem.

Eis que chega a esperada hora do jantar. Macaco velho, precavido, Herbert sugere que  antes das 18h a gente já fique por perto, no salão, jogando conversa fora até colocarem os panelões.

Com pouca luz de energia produzida por baterias, começam a colocar a comida para um verdadeiro batalhão, cerca de 65/70 pessoas: um panelão de feijão, um de arroz, um de purê, um de carne/churrasco,  um de cenoura... Não  me lembro se tinha macarrão.

Os panelões estavam no claro,  mas 9na enorme  fila que se formou após o sinal do Zé do Zico predominava o escuro. Estratégia do guia provou-se acertada, já que fomos os primeiros a nos servir. Cara,  fiz um prato vergonhosamente montanhês. Eu quase não enxergava a Ana, à minha frente. Nome do abuso? Serra da Bocaina.  Juro que não repeti.

Gozado, e bom,  é que a fila andou muito rápido. Pelo jeito todo mundo estava com fome e acelerou nos panelões. Por isso quem pretendia  partir pro segundo tempo acabou caindo do cavalo.

Tinha  coca e até cerveja gelada, mas aquela pinguinha que sobrou no Naldo faltou no Zé. Diz a "lenda" que os pedreiros que foram fazer o novo fogão à lenha tomaram três litros. Resultado: fogão torto, mas comida boa.

Sem disposição suficiente  pra curtir a conversa  ao redor da fogueira, nosso grupo não demorou pra ganhar o caminho dos sonhos. Não sem antes se encantar com uma "procissão"  de vaga-lumes.  Cama simples e sono profundo. Só interrompido na hora de tirar "foto da bromélia úmida" e aproveitar para admirar o céu emoldurado por milhões de  estrelas.

(Vaga-lume ou pirilampo são denominações comuns de insetos coleópteros  das famílias Elateridae, Phengodidae ou Lampyridae, notórios por suas emissões de luz fosforescente).

(Bromélias: designações de plantas do gênero Bromélia, da família das bromeliáceas, com 48 espécies terrestres, nativas da América Tropical. Algumas têm fruto comestível e/ou fornecem fibras, mas são cultivadas como ornamentais) -- singela brincadeira em  homenagem ao nosso biólogo.

Então... Enquanto eu via estrelas lá  fora,  lá  dentro, de madrugada,  as meninas, especialmente Iris e Angela,  tinham a companhia de um gato miando no  alto das paredes sem forro, junto ao telhado meio esfumaçado.

Dúvida cruel:  não era uma suçuarana, mas a cada miado elas  se arrepiavam e  imaginavam que o danado poderia pular,  provocando um estardalhaço. Exatamente o oposto do segredado pelo Herbert, já que fazer silêncio era primordial pra quem  queria sair à francesa, sem acordar ninguém. 


                                       NA DESCIDA TODO SANTO AJUDA?

Conforme  sugerido e combinado com o Herbert, no terceiro dia acordamos  por volta das 5h, antes de todos os outros trilheiros. Fora da casa havia cerca de 35 pessoas ainda dormindo,  distribuídas em 17 barracas. Por isso tomamos café  simples antes de todos e, às 6h, fomos os primeiros a ganhar a trilha. Sempre na companhia do amigo "Mambuca".

Por precaução, já que a Gaelle não passava muito bem, o Herbert optou por alugar um burro. Providência mostrou-se acertada. Como todas as outras implementadas pelo guia/médico/amigo.

Foram 18 km muito interessantes. Piso secular, mata fechada, árvores frondosas como as figueiras,  plantas minúsculas,  água em abundância e pássaros  aos borbotões. Uma festa na floresta. Como convidados, cabe a nós respeitá-la e preservá-la.

Não vimos onça parda, nem pintada. Tampouco cobra peçonhenta,  macaco bugio ou muriqui. Mas ouvimos inhambu, pomba,  sabiá,  gavião, araponga, tucano... E vimos um bando de tangarás-dançarinos. Que privilégio! Uma bênção!

Ganho acumulado de elevação (GAE) chega a apenas  950m em três dias. Perda acumulada  beira 2,5 mil metros. Portanto, é  descida constante, a maioria sobre as pedras lisas colocadas  pelos escravos nos séculos XVII, XVIII e XIX. Vantagem é que a angulação é baixa e favorece.

Na descida todo santo ajuda? Nem sempre! Se estivesse chovendo, com certeza a trilha ficaria bem difícil e  não  chegaríamos ao distrito de Mambucaba sem  cortes, lesões e contusões. Mas foi tudo bem. Nenhuma baixa significativa.

Nosso descanso mais longo foi onde o rio Santo Antonio deságua no agora grande Mambucaba. Estômago forrado, sede saciada, corpo refrescado, lá fomos nós para os  4 km finais. Atravessamos uma ponte pênsil --  bem pensa  para um dos lados, por sinal -- e não demoramos para chegar  ao nível do mar.

Sinal de civilização. Não gostei. Especialmente porque  percebi que ali não existe qualquer portaria pra controlar entrada e saída de pessoas no PNSB. Um parque nacional bem maior do que o de Itatiaia mas que recebe verba irrisória  perto de suas necessidades básicas para conservação e fiscalização decentes.

Com a palavra, as  digníssimas autoridades estaduais e federais.  Se é que elas não se omitem e fazem vistas grossas exatamente porque ultimamente Angra virou terra-de-ninguém. O tráfico comanda e  pode já estar a ditar regras nas franjas do parque. 

 Então...dentro da hora marcada, 14h, lá estava a confortável van à nossa espera ao lado da ponte de arame. Com um bom motorista, não demorou muito para superarmos a  Angra dos Reis de nuvens carregadas pela Rio-Santos e depois da usina  nuclear entrar na direção de Lidice, Rio Claro-RJ, Bananal-SP, Arapeí e finalmente São José do Barreiro, num lindo final de tarde e início da noite.

Se valeu a pena? Sim, muito. Fascinante!  Família MW Trekking foi show de bola. Fica aqui nossa gratidão a todos, especialmente ao Herbert e ao Pedro.  E a todos pelo companheirismo, sinônimo de respeito quando o grupo está acima de cada um de nós.




   

 

2 comentários:

  1. Cada detalhe mais encantador que o outro, não tenho como não viajar no texto... riquíssimo!!!
    As meninas deram sorte...se a suçuarana tivesse pintado na pousada, teriam fugido pela janela!!!! Mas Deus é incrível mesmo, nos presenteando com tantas belezas, muitas vezes nas correrias da vida deixamos passar despercebidas. Feliz por todos que participaram da trilha... PARABÉNS.

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  2. Foto lindíssima, enriquecendo muito mais o texto!!!!

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