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quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O adeus do zagueiro do lápis azul

Foram 14 anos de um relacionamento leal. Nem sempre imune a turbulências comuns para quem tem sangue italiano, senso de justiça à flor da pele e personalidade antagônica a bajuladores e hipócritas de plantão.

Foram 14 anos de respeito, de aprendizado contínuo com quem sempre fez da exemplar independência editorial um dos pilares de um jornalismo comprometido com a região, com a informação, com a ética e com o profissionalismo.

Foram 14 anos de Diario do Grande ABC em duas etapas: de 75 a 88 e entre 97 e 98. Desde a revisão até a redação, como editor de Esportes, a convivência com o poder.

Mas não o poder do empresário predador e irresponsável. O poder de cada título, de cada palavra, de cada crítica mais ácida. Cortante, dura,porém embasada, imparcial e justa. Com o perdão da redundância, que o digam os maus políticos da época.

E também o poder daquele maldito lápis azul -- marca e corta texto -- com o qual convivi desde os tempos de revisor, em 75. Juro que no início, com apenas 22 anos de idade e formado em Educação Física, eu tremia de medo. Do lápis azul -- símbolo da censura durante a ditadura portuguesa -- e das advertências do poderoso chefão.

Por sorte, revisava o editorial, importantíssimo, naquela época, ao lado dos experientes Mário Polesi (irmão de Fausto) e Orlando Barbeito, duas pessoas às quais também serei eternamente grato.

Depois, já na redação, fui me acostumando com a presença constante daquele senhor imponente, que, vítima de parada cardíaca, nos deixou na manhã de ontem.

Fausto Polesi não foi meu mestre. Meu mestre, outro a quem serei eternamente grato, é o amigo Daniel Lima. Mas o Fausto também foi importante na minha formação e na minha postura profissional.

Tivemos, sim, alguns arranca-rabos. Por que não? Quase sempre no campo profissional. Mas sempre prevaleceram o bom senso e a lealdade, a sinceridade, o olho no olho. Mesmo quando o homem estava nervoso e com semblante alterado de raiva.

Lembro-me de que, na década de 80, cheguei a ter um Confidencial engavetado. Guardo-o até hoje, como relíquia marcada de azul. O famoso e temido lápis azul. No caso, relembrando Portugal, sinônimo de censura.

O assunto eram os Jogos Escolares de Santo André.Os homens públicos cujas atitudes --ou falta de -- foram criticadas com rigor eram amigos íntimos da cúpula da rua Catequese. A incompetência teve um manto protetor, em detrimento da ética e da moralidade esportiva.

Até hoje, não sei de quem partiu a ordem, mas entendo que a liberdade jornalística pregada e exercitada por Polesi não permitiria, individualmente, tamanha afronta profissional.

Não gostei mas entendi e, uma semana depois, escrevi o que queria, de outra forma. Não sem inventar que meu cachorro -- Rosnec, o censor -- tinha comido a coluna anterior. Pelo menos, sobrevivi com a consciência em paz, sem violentar meus princípios!

Também levei um puxão de orelhas na sala do quarto andar quando meti bronca numa atitude intempestiva de um então presidente do Esporte Clube Santo André, que, alcoolizado, invadiu o vestiário e ofendeu jogadores e comissão técnica num intervalo de jogo.

À época, meu companheiro de zaga na Seleção da Imprensa do Grande ABC e de chope após algum jogo do Corintians questionou a notícia e pediu a fonte. Sustentei a informação e não revelei a fonte,lógico, atitudes que aprendi um pouco com ele mesmo.

Minhas fontes estavam dentro do próprio vestiário. As palavras do diretor de redação foram mais ou menos estas:"Garoto, gosto desse jeitão italiano. Nós ainda vamos brigar muito. Por isso você trabalha comigo. Mas você insiste em enfiar o dedo na tomada. Cuidado! Posso cortar sua mesada". (rsrsrs)

Pra bom entendedor..."Obrigado. Fique à vontade. Não vou mudar" -- afirmei sorrindo, olhando nos seus olhos e simulando me ajoelhar de mãos postas. Mais risos.

Pedi demissão do DGABC pela primeira vez em março de 88, quando a cabeça de um excelente profissional foi cortada após pressão comercial de uma multinacional, a GM, dona de um grande time de futsal mas não da verdade.

"Como vocês podem demitir um repórter se o responsável sou eu, como editor? Será que um homem vale menos que um anúncio, Italiano? Se for assim, quero que você também me demita, agora. Por favor".

Vermelho, bravo, com a boca torta e um sorriso emblemático, o editor-chefe não titubeou: " Decisão de demitir o repórter não é exclusivamente minha. Faço parte da diretoria. E também não vou te mandar embora. Quero você aqui".

Eu sabia. Não precisava dizer mais nada. Duas semanas depois eu deixei o DGABC, demitido com todos os direitos trabalhistas, para voltar quase 10 anos depois, com indicação do próprio Fausto para o filho Alexandre, então editor-chefe em substituição ao pai, agora "apenas" diretor de redação.

Enfim... São apenas algumas recordações de quem não descarta gratidão. Foi-se um corintiano verdadeiro (Jorge Alvinegro era um dos pseudônimos do grande editorialista).

Foi-se um ex-presidente do Santo André que jamais deixou de ser torcedor de carteirinha. Foi-se mais um companheiro com muitos feitos relevantes e com tantos defeitos quanto nós. Foi-se a voz mais forte do cidadão mais fraco.

Foi-se um ex-tecelão cujo sobrenome deveria ser Trabalho. Foi-se o homem nascido aqui na Alfredo Fláquer que virou jornalista de fato e fez escola sem sonhar com honras de herói. Obrigado, zagueiro! Não se esqueça de levar o lápis azul.

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