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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

O boné, a mão, o pênalti e a regra

Começo pedindo desculpas pela licença poética e pelos nomes fictícios. A essência é verdadeira e me trouxe lembranças de 50 anos atrás, lá em São José do Rio Pardo.

Das peladas noturnas nos paralelepípedos da ainda quase deserta avenida Independência. Postes serviam como gols, além de iluminação estratégica; paredes e sarjetas como tabela.

Dos pegas na famosa rua de baixo, de terra batida e inúmeros terrenos baldios. Por falta de luz, ali só se jogava durante o dia. Gols eram de pedras ou dois tijolões daqueles antigos.

Dos pátios do Cândido Rodrigues ou da Escola de Comércio, onde os intervalos viravam decisão de campeonato. Gols eram de verdade, na quadra ou no campinho, mas nem sempre havia bola.

Quando moleque, também brincávamos no campão de terra ou nos campinhos de grama natural da fazenda Boa Esperança. Gols eram de tocos, pés de café ou mesmo duas palmeiras ou macaubeiras.

Independentemente do "templo sagrado", sempre havia um dedo aberto, uma entrada maldosa, uma canela marcada, um arranca-rabo com direito a palavrões, dois minutos de "jogo bruto" e muita, mas muita, muita alegria.

Pelo simples prazer de se correr atrás da bola. Ninguém ligava se era bexiga de boi, meia, borracha, plástico ou o famoso capotão, que, quando encharcava, ganhava um peso danado.

Pois é... Hoje, por volta das 11h, por 10 minutos, voltei no tempo. O "estádio" é o da Emeif Carlos Drummond de Andrade, ali na frente do ESI/Colégio São José.

À espera de uma louca paixão de apenas cinco anos de idade chamada Victor Raddi Renaldin, ali na esquina, encostei no "alambrado" e comecei a prestar atenção no "clássico", no "gramado" de concreto. Espectador único e privilegiado.

O gol? Entre duas árvores protegidas por cimento. As feras tinham no máximo nove anos de idade. No meio dos moleques ( todos de tênis, menos Romarinho, descalço) havia até uma menina, que depois sumiu.

Não pretendo narrar o jogo inteiro, mas preciso contar a cena do dia. Rápido, driblador, de bom chute e ainda por cima meio marrento, Romarinho já havia feito pelo menos três gols quando aconteceu o fato que contradiz o ex-árbitro Arnaldo César Coelho.

Quer ver como a regra não é clara? Romarinho dominou, deu um drible seco em Bruno e passou de passagem pelo gordinho Ígor. Diante do último adversário, apelidado de Brinquinho, a fera não teve dúvida ao ver o canto esquerdo de Rogério Ceni totalmente aberto.

Rápido no raciocínio e na ação, o matador bateu de pé direito. Cheiro de gol. Que nada, o brincalhão e desajeitado Brinquinho não teve dúvida. Com o boné na mão, impediu que a bola ganhasse as "redes".

Depois de muito empurrão e bate-boca inevitável sobre se foi ou não pênalti, Brinquinho saiu com a pérola:

-- Que regra que nada, mano! Onde tá, na regra, que boné na bola é igual a mão na bola? Então não é pênalti. Não coloquei a mão na bola; toquei só o boné, ela desviou e parou aí.

Entre boquiabertos e resmungões, ficou a dúvida. Não havia, pelo menos ali, resposta para o impasse. Foi quando Rogério Ceni, magrelo, de óculos e com uma camisa do São Paulo, bem surrada, cantou de galo:

-- Pode bater que eu pego. Sem adiantar...

Após rápida troca de olhares, Romarinho coloca a bola na "marca fatal". Até Carlos Drummond de Andrade passou a prestar atenção. Afinal, tudo poderia terminar em poesia, em versos ou em prosa.

O chute sai seco, no canto esquerdo baixo de um Rogério Ceni estático, sem qualquer possibilidade de defesa. Romarinho beija a camisa, levanta o dedo indicador para os céus e diz "eu sou o cara".

Feliz, esse caipira metido a blogueiro "aplaude" e vê passar pela cabeça um filme de meio século. Bom seria voltar aos tempos de criança. Voltar a brigar para ficar de bem dois minutos ou dois dias depois. Simplesmente, voltar a brincar com a doçura e todos os perdões da inocência, sem maldade.

Toca o "sinal", a pelada termina e os times se recolhem morrendo de rir. Tapinha nas costas de Romarinho. Afinal, quando ele nasceu Deus apontou o dedo e disse: "Esse é o cara".

Atravesso a rua, cumprimento o Marcel Valentim -- meu ex-aluno do São José -- e vou pegar o verdadeiro "cara". Afinal, é dia de o vô jogar bola com o Victor no Parque Central.

P.S. -- acho que o "juizão" deveria dar bola ao chão e expulsar o boné do Brinquinho.

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